Quando a Cinthia me
passou a lista de lançamentos de julho da Bertand Brasil para eu poder escolher
qual seria o livro que iria receber e resenhar, eu logo pensei nesse livro, primeiro porque já
tinha a biografia de Pavarotti escrita por Andrea Bocelli e que também estava
nessa lista, mas também porque quando li a sinopse logo pensei na quase
tragédia dos mineiros chilenos que ficaram presos em uma mina que desabou em
2010. Acho que quem já leu esse livro
dificilmente não compararia o desastre fictício da Gentil Clara com esse da
vida real, mesmo que os finais tenham sido muito diferentes.
Enquanto esperava que o livro chegasse, via pela internet os
diversos comentários que falavam que o livro era incrível e que mudou a vida de
quem o leu. Tais comentários não alteravam as minhas expectativas, mas me
deixavam mais curiosa. Quando finalmente pude começar a ler o livro, vi que era
realmente o que a sinopse falava: A história contava sobre o que aconteceu com
as vidas das pessoas que foram impactadas pelo desastre da Gentil Clara assim
como esse impacto afetou as gerações seguintes.
O livro se passa numa cidade fictícia localizada no País de
Gales, que é uma parte do Reino Unido pouco conhecida Penso até que a maioria
de vocês devem ouvir a palavra Gales só quando se fala do Príncipe Charles da
Inglaterra, que é conhecido também como Príncipe de Gales, já que o titulo, que
é ligado historicamente a esse lugar, foi incorporado a Coroa Inglesa após a
conquista desse território em 1282. Curiosamente, o País de Gales é o primeiro
local onde o carvão era extraído com a finalidade de produzir energia, desde
segundo milênio a. C.
O mais curioso é que mesmo sendo comprovado que a queima do
carvão gera um índice altíssimo de poluição e de que sua extração causa
diversos incidentes em que mineiros perderam suas vidas, o carvão ainda é usado
na geração de energia elétrica em vários países, como a China, por exemplo.
Voltando ao livro, a amizade entre o garoto Ieuan “Laddy”
Merridew, que se muda para essa cidade após a separação dos pais, e o mendigo Ianto Passchendaele Jenkins, que conta suas
histórias na varanda da Capela Ebenezer acaba sendo o fio condutor por onde
todas as histórias das famílias que foram afetadas pelo acidente na mina Gentil
Clara são contadas para o leitor através de Ianto. E são essas histórias que
mostram o tema principal do livro: Como uma tragédia pode afetar as pessoas
para o resto de suas vidas e até mesmo as novas gerações.
Do marceneiro que tenta fazer penas de madeira até o
cobrador de gás que cuida da sua horta somente à noite, Ianto conta, em troca
de um simpático pagamento em doces e cafés, como as características curiosas de
cada morador influenciado pela Gentil Clara foram surgindo. Ao mesmo tempo,
como se fosse uma forma de conclusão após terem essas características reveladas,
esses moradores passam por fatos que acabam fazendo com que eles repensem suas
vidas. E entre cada história, sua amizade com Laddy faz com que sejam revelados
pequenos fragmentos da história de Ianto, do que o levou a ser o que é hoje, um
guardião do legado da Gentil Clara com uma vida muito pobre.
- Ouçam com os ouvidos, pois tenho uma história para eles, sabe, sobre Ícaro Evans e suas penas. Mas as histórias precisam de um combustível, e já faz um tempinho que eu não como nada. (Página 24)
Os contos, que partem
da perda de entes queridos no acidente da mina, também possuem outros elementos
como traições, frieza, preconceito, lealdade, raiva, ódio e amor. Mas também
possuem elementos sobrenaturais leves, que fazem com que a veracidade das
histórias de Ianto seja questionada várias vezes por Laddy, mas no final, uma
parte da veracidade dessas histórias é comprovada através do protagonista do
último conto, ao completar o quebra-cabeça da história de Ianto. Mas não vou
contar quem é para não estragar a beleza desse final.
“Naquele exato momento, a luz do sol abriu caminho pela janela acima de sua cabeça e brilhou sobre ela, sobre sua mão, onde sua aliança cintilou em resposta... e ela ergueu os olhos e, o que ela viu senão a sombra de um homem olhando para ela, observando-a com um meio sorriso. E ele era lindo. (Página 229)
Juro que tive o meu conto favorito, que é o do afinador de
pianos Nathan Bartholomew, pois é uma história densa e cheia de temas considerados
polêmicos, mas contados com uma sutileza incrível, que faz você compreender as
atitudes de Eve e odiar o preconceito em relação a ela e ao seu filho Edward, o
pai de Nathan, só porque ela teve esse filho de um homem que pagou para fazer
amor com ela. Mas na cabeça dela, todos os homens que faziam amor com ela eram
o noivo que ela perdeu no acidente da Gentil Clara, por isso ela se prostituia,
não por dinheiro, mas para encontrar esse amor que perdeu. De algum modo,
enquanto eu lia, pensava na música “Thinking of You” da Katy Perry, pois a
música fala de uma situação semelhante a de Eve.
Porque quando estou com ele, eu penso em você. Penso em você. O que você faria se fosse você quem estivesse comigo esta noite? Oh, eu desejaria que eu estivesse olhando em seus olhos. (Minha tradução para o refrão da música “Thinking of you”)
O final do conto possui uma cena que é sensual e sensorial,
mas ao mesmo tempo carregada de significados em relação a vida de Nathan.
Os dedos dela encontraram a pele de seu pescoço e continuam tocando, correndo em volta e sob seu cabelo, conforme ele se reclina contra ela, os dedos se movendo até encontrar a pele da garganta do afinador de piano, onde descansam, e a respiração dela é morna em seu ouvido. A mulher acaricia seu pomo de adão e desce até tocar nas clavículas, movendo-se lentamente e descendo até o peito de Nathan, enquanto ele toca as teclas do piano, ouvindo os sons em sua cabeça. (Página 209)
Mas também me identifiquei com a história de Philip
“Efetivo” Philips, que era impedido de brincar quando era pequeno pelo seu pai,
pois achava que brincar não fazia bem. E o motivo dessa crença muito ruim do
pai está também ligado ao acidente da Gentil Clara. Mas quando ele tem que
cumprir o castigo imposto pelo pai, Philip encontra entre os livros da
escrivaninha de seu pai o livro “As Aventuras de Sherlock Holmes” e é a partir
desse momento que a leitura se tornou uma forma de escapar de seus problemas,
além de também dar conhecimento para o Philip. Tal sensação é a mesma que tenho
com os livros que leio, pois não importa o quão difíceis estão as coisas na
minha vida, os livros me levam para outro lugar para me ajudar a me recuperar e
a me tornar mais forte.
“Sherlock Holmes, o livro era sobre ele. E os outros também, todos de Sherlock Holmes, aventura após aventura. Portanto, sim, Efetivo Philips foi impedido de brincar de trem naquele momento, e teve que escrever suas frases, e aquela foi tampouco foi a última vez. Mas, estranhamente, escrever frases era algo que, depois de um tempo, parecia não mais incomodar Efetivo. Mil. Duas mil. Três... com ajuda daqueles livros vermelhos da prateleira de cima. (Páginas 131 – 132)
Apesar de não ter as tecnologias dos dias de hoje na cidade
de Laddy e Ianto, a narrativa de Vanessa Gebbie torna a história atemporal. Até
mesmo porque depois de tragédias e traumas como os da Gentil Clara, você sabe
que as vidas de quem vive no local onde elas ocorreram vão mudar para sempre
devido a sua influência. Sei disso porque vivo em uma cidade que foi marcada
por uma enchente em 2011 (Para quem não sabe, eu sou de São José do Vale do Rio
Preto.) e mesmo que aparentemente tudo pareça normal, a vida de quem passou por
isso fica marcada e modificada, mesmo que não seja por medos e preocupações.
Mas curiosamente uma parte do texto diz que quem está
reinando naquele momento em que Laddy e Ianto se tornam amigos era a Rainha e
em outra parte, o filme que era exibido no cinema era Desafio das Águias, que
tinha sido lançado nos cinemas do Reino Unido em 1968. Por isso, penso que a
história se passe em 68, mas só se nota isso se você prestar atenção no texto e
se pesquisar pelo filme, pois a narrativa te faz esquecer esse fato.
O programa é como um regalo para ver Desafio das águias porque sua vó gosta de águias... (Página 191)
Poster do filme "Desafio das águias"- Retirado da ficha do filme no IMDB |
Com uma história tão encantadora e emocionante, e com uma
autora com uma ótima capacidade de contar histórias, O Conto do Covarde merece
cinco estrelas.
Antes de encerrar o texto, não posso deixar de explicar
sobre o premio que uma passagem desse livro ganhou, o Novel in a Year do jornal
inglês Daily Telegraph. Esse premio, que só teve uma edição, foi criado a
partir da coluna de mesmo nome da autora Louise Doughtry, que consistia de
lições sobre escrita criativa acompanhada de exercícios para treinar as pessoas
nesse tipo de escrita, num tipo de curso que durou um ano. Após esse ano foi
proposto o premio, que consistia em enviar as 1000 primeiras palavras do
romance que estão escrevendo junto com uma carta contando sobre o desenvolvimento
desse enredo. Das inscrições enviadas, 50 foram escolhidas pelo júri, que
consistia da própria autora da coluna e de seu agente literário, seu editor e
um amigo dela. Dessas 50, cinco foram escolhidas como vencedores do premio, que
era simplesmente um almoço com os membros do júri e alguns profissionais do
mercado editorial, sendo que um desses vencedores é a Vanessa Gebbie. Segundo a
Louise, o editor e o agente adorariam encontrar um novo autor nesse concurso,
mas não tinham certeza se ira acontecer. Pelo jeito, o desejo deles se
realizou. Curiosamente, o nome dado para a passagem que ganhou o Novel in a
Year era originalmente Boy in the tunnel (Garoto no túnel em inglês), mas para
mim esse titulo não combina com o inicio do livro, que é a parte onde deveriam
ser tiradas as 1000 palavras. Mas mesmo assim, deu origem a um livro muito
bonito. É possível saber mais sobre esse concurso nesse link e a lista com os
vencedores nesse outro link. Eles estão em inglês, mas o que escrevi aqui é um
resumo do que é dito nesses sites.
Espero saber nos comentários se já leram o livro (e o que
vocês acharam dele) ou pensam em ler.
Até a próxima resenha!
Eu 'conheço' as minas do País de Gales por alguns livros históricos que já li e principalmente pela Trilogia do Século de Ken Follett, temos uma família do País de Gales e acompanhamos as 'agruras' das minas.
ResponderExcluirAdorei saber que o livro trás diversos contos interligados e sempre com a relação à Mina. Quero muito lê-lo, quando o tempo voltar e o livro for lançado em e-book, já que apesar de amar livros de papel, minha vida anda tão corrida e 'ecológica' que carrego todos os meus livros (quase todos) no Kindle para facilitar, um pouco.
Adorei a resenha, Letícia!!!!
Olá Cinthia!
ResponderExcluirObrigada pelo elogio. A autora é especialista em contos, e utilizou essa habilidade para criar uma história maior. Aliás, esses dias vi na TV uma matéria sobre uma explosão numa mina na Bósnia que me fez lembrar esse livro quando vi as imagens do resgate e da reação das famílias. Contei a Bertrand Brasil sobre isso no Twitter e logo eles me responderam que, infelizmente (porque ninguém quer que coisas desse tipo aconteçam), para eles isso também lembrou o livro. Sim, a vida imita a arte e a arte imita a vida, até mesmo nos momentos mais ruins.
Vou perguntar a Bertrand Brasil se eles vão lançar esse livro em e-book, mas todos os últimos lançamentos da editora não estão sendo lançados em e-book. :f
Um abraço!